Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Descrição de chapéu Folhajus

Um Porto Seguro da segregação

Ação judicial contra colégio questiona a caridade com recurso público

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Fui aluno do Colégio Visconde de Porto Seguro entre os cinco e 17 anos. Criança branca e de classe média do Morumbi, gozei de todos os privilégios dessa tradicional escola paulistana.

Aprendi alemão, fiz intercâmbio em Hildesheim, passei em vestibular disputado, vivi nos círculos da elite econômica. Dificilmente teria feito pós-doutorado em direito na cidade de Berlim, financiado pela Fundação Alexander von Humboldt, não fosse a entrada precoce na língua e cultura germânicas.

A infraestrutura era notável: laboratórios, biblioteca, teatro, bosque com viveiros, piscinas, ginásio de ginástica olímpica, pista de atletismo, campo de futebol. Intramuros, era o experimento colonial brasileiro: branco, europeu, uniformizado, com disciplina para desenvolvimento do corpo e do espírito. Uma síntese da "boa educação".

Fachada norte do prédio do Colégio Visconde de Porto Seguro, em São Paulo
Fachada norte do prédio do Colégio Visconde de Porto Seguro, em São Paulo - Juliana da Cunha Costa Santos/Wikimedia Commons

A tragédia social ficava extramuros. Exceto por um detalhe: num corredor lá embaixo havia as classes da "TG", sigla para as turmas do currículo gratuito no período da tarde, onde predominavam alunos e alunas negras e pobres da favela de Paraisópolis. Todos numa mesma escola. Cada um no seu devido lugar.

No banquete de privilégios, o colégio só me negava o de uma educação diversa. E violava o direito a não discriminação dos alunos da TG. O abismo social brasileiro não era percebido como oportunidade de reflexão crítica. Não nos dizia respeito. Os raros encontros se davam no futebol do recreio, quando o revezamento de quadras nos colocava com a TG.

O discurso oficial da escola ventilava um senso de dever cumprido. A redenção da caridade aliviava qualquer chamado da consciência.

Anos mais tarde, o Porto Seguro decidiu acabar com a discriminação intramuros. Podia melhorar, mas piorou. Em vez de unir alunos bolsistas da TG com alunos pagantes, resolveu construir a "Escola da Comunidade" na Vila Andrade. Enviou bolsistas para lá e extinguiu até mesmo aquele efêmero convívio do futebol.

Mas qual o problema de discriminar um pouquinho? Pelo menos esse colégio não ajuda alunos carentes? O ótimo não é inimigo do bom?

O problema, contudo, não é "só moral". Tem repercussão constitucional e legal. A prática da escola não só viola o direito à igualdade. Por terem Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), ela se beneficia de isenção fiscal (artigo 197 da Constituição). Concede bolsas a alunos pobres, sujeitos a diferentes prédios, material didático, currículo. E o Estado renuncia ao poder de arrecadar. A lei proíbe discriminar. O Porto Seguro discrimina.

Ação civil pública proposta pelas organizações Educafro, Ponteduca e Anced Brasil resume o fenômeno da caridade com recurso público:

"Ao operar a renúncia fiscal, o Poder Público é quem de fato financia a concessão das vagas a filhos e filhas de famílias hipossuficientes". E deixando de pagar tributo, "viabiliza operação financeira para oferecer currículo internacional e bilíngue aos alunos pagantes em preço competitivo".

Uma espécie de planejamento tributário que, por meio de subsídio cruzado, permite ao colégio conceder bolsas, oferecer ensino inferior em espaço segregado, e cobrar mensalidade competitiva.

O próprio colégio chega a essa inusitada conclusão em texto dos 50 anos da Escola da Comunidade: "um projeto social que beneficia não somente alunos bolsistas, mas toda a comunidade do Porto, incluindo alunos pagantes, que indiretamente usufruem da imunidade obtida pela instituição, já que a fundação não recolhe contribuições sociais, possibilitando mensalidades reduzidas para os alunos não bolsistas."

Em 2022, troca de mensagens entre alunos na unidade de Valinhos do colégio virou notícia. Num grupo intitulado "neonazistas do Porto", aluno disparou "espero que você morra FDP negro". Outro sugeriu "fundação dos pró-reescravização do Nordeste". Após os escândalos, o colégio individualizou responsabilidades e expulsou envolvidos.

A ação judicial pede medidas básicas: inclusão de bolsistas nas mesmas turmas de pagantes; criação de comissão para verificar cumprimento da lei; direção geral única para todos os alunos; currículo antirracista; oferecimento de atividades curriculares e extracurriculares idênticas; publicação dos valores financeiros do programa de bolsas e benefícios fiscais.

O Porto Seguro tem a opção de levar sua desrazão até as últimas consequências e esperar juiz ordenar a não discriminação. Ou poderia mostrar que escolas privadas têm condições de obedecer a lei e praticar educação inclusiva.

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